Bem de família voluntário e bem de família legal
26 de novembro de 2019
-As leis brasileiras são instituídas sempre com base nos princípios e garantias da Constituição Federal. Uma dessas garantias é a proteção à dignidade da pessoa humana, que pode ser encontrado em seu art. 1º, tamanha importância dada a esse princípio.
Sobre isso, um tema bastante interessante e discutido no meio jurídico é a chamada impenhorabilidade do bem de família, regulamentado pelo Código Civil e pela Lei 8.009/90.
Para quem não sabe, existem duas formas de se ter um bem de família. São elas: o bem de família voluntário, regido pelo Código Civil, e o bem de família legal, regido pela lei especial 8.009/90.
O bem de família voluntário pode ser instituído por, como o próprio nome já diz, vontade do proprietário, através do registro de uma escritura pública ou por meio de testamento.
Contudo, esse bem – que pode ser uma casa, um apartamento, um carro, etc – não pode ultrapassar, em valor líquido, o montante de 1/3 do patrimônio da pessoa. Ou seja, se uma pessoa tem um patrimônio no valor líquido de R$300.000,00, ele só pode instituir o bem de família em cima de, no máximo, R$100.000,00 do seu patrimônio. Assim, uma casa que tenha o valor de mercado de R$150.000,00 não pode se tornar bem de família. Entretanto, um carro no valor de R$20.000,00 e um apartamento no valor de R$80.000,00, pode. E aí, esses dois bens se tornariam impenhoráveis.
Em contraponto, existe o bem de família legal, que é impenhorável e, portanto, não pode ser utilizado para quitar qualquer dívida contraída pelo casal ou entidade familiar
(aqui entendido a pessoa solteira, separada, viúva).
Essa impenhorabilidade foi definida pela lei para proteger e garantir aquela dignidade que a Constituição traz em seu art. 1º. E a dignidade da pessoa envolve, é claro, o direito a um teto sobre sua cabeça, o mínimo necessário à sua sobrevivência.
Por isso, a impenhorabilidade legal sobre o bem de família.
Agora, nesse caso, o que pode ser considerado bem de família legal? Segue o texto do art. 1º da Lei 8.009/90:
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Resposta: bem de família é o imóvel próprio do casal ou entidade familiar, compreendendo as construções, benfeitorias, móveis e afins, que resguardam o local. Portanto, aquele local aonde a pessoa reside e que, sem ele, ela ficará sem seu direito mínimo, que é a moradia.
Jurisprudência: imóvel dado em garantia pelo executado
Recentemente, a ministra Nancy Andrighi do STJ julgou um recurso especial (RESP nº 1.782.227 – PR) no qual a pessoa que detinha uma dívida havia feito acordo com seu credor, dando um imóvel seu em garantia. O acordo foi firmado e, depois, o executado resolveu recorrer, alegando que aquele imóvel dado em garantia constituía um bem de família e, por isso, era impenhorável.
Restou a discussão: um bem dado em garantia pelo próprio executado pode, depois, ser usado como bem de família, de modo a afastar essa garantia e quebrar o acordo firmado?
Pelo julgamento da ministra, não.
Essa decisão trouxe à luz novas discussões, uma vez que a conduta do executado, nesse caso, vai de encontro a dois princípios fundamentais dentro do mundo dos acordos e relações negociais: ética e boa-fé.
O executado firmou o acordo e, por vontade própria, deu o imóvel em garantia, sem jamais citar tal impenhorabilidade. O credor aceitou o imóvel de boa-fé, acreditando naquilo que o devedor estava afirmando e assinando, de modo a ter seu crédito quitado.
No entanto, após um tempo, com comportamento contraditório, o devedor vem sustentar se tratar de um bem de família e demandar a sua impenhorabilidade.
Antigamente, a jurisprudência havia se consolidado no sentido de reconhecer a proteção legal ao bem de família e entender que essa proteção não pode ser afastada por renúncia do devedor. Mas o caso em discussão é peculiar, já que o devedor deu o imóvel em garantia, como forma de firmar o acordo com o credor e, depois, veio sustentar sua impenhorabilidade. Um bem, inclusive, que não fora anteriormente registrado como bem de família voluntário.
No entendimento da ministra, isso consiste em comportamento contraditório, que, a depender, beira a má-fé, o que não pode ser aceito pelo Judiciário. E foi isso que a ministra fez: decidiu pela penhorabilidade, já que o próprio executado o ofereceu em garantia e, assim, prezando pela boa-fé das relações comerciais. No caso, boa-fé do credor.
Impenhorabilidade que alcança pessoas solteiras, separadas ou viúvas
O STJ editou a seguinte súmula:
O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
Nesse caso, o STJ entendeu que um imóvel único de uma pessoa solteira, separada ou viúva se torna impenhorável, já que a legislação precisa ser interpretada conforme a Constituição, e a Constituição garante o direito à moradia a toda e qualquer pessoa. Assim, o solteiro deve ser tratado da mesma forma que uma pessoa casada, assim como o celibatário, ou o viúvo.
Essa questão também foi entendida dessa forma em razão de a lei 8.009/90 não citar qualquer número mínimo de pessoas necessário a constituir uma família. E o sentido social da norma é garantir um teto para cada indivíduo.
Portanto, qualquer situação que seja, a impenhorabilidade vai incidir sobre o bem de família – guardada as devidas exceções da lei e a questão da definição do bem de família: voluntário ou legal.
Liane Cosenza
Paulo Cosenza
< voltar